Essa mudança do papel da mulher vem de um longo processo e está muito atrelado a lutas coletivas, como o movimento feminista . Sempre existiram mulheres que ocuparam cargos importantes, que revolucionaram, mas nem sempre elas foram reconhecidas. Hoje se existe mais oportunidades, como nas universidades, com cotas para mulheres negras e indígenas, por exemplo, além de outras políticas públicas, mas ainda se existe muito essa estigmatização. O papel da mulher na sociedade ainda é muito atrelado ao processo reprodutivo, e quando elas optam por não o seguirem acabam por quebrar paradigmas. Só que muitas vezes elas são reconhecidas como as "solteironas", principalmente na área rural, e até mesmo são vistas como "menos mulheres".
Mas eu acredito que um dos motivos que fazem com que as mulheres abdiquem de uma família com filhos é a sobrecarga, pela concorrência com os homens, pois elas precisam trabalhar 8 ou 10 horas fora e ainda chegar em casa e lidar com a sobrecarga das tarefas domésticas e dos filhos. Nós mulheres precisamos penar 3x mais do que homens em uma carreira.
Isso eu vejo como uma violência simbólica, esse papel de que a casa é responsabilidade da mulher. Pra que a gente chegue a uma igualdade no futuro, é preciso de educação e socialização, que essa geração de hoje seja ensinada de uma forma diferente, de que homens e mulheres tem papeis iguais.
Essa quebra de paradigma ainda é vista, entretanto, na maioria dos casos com mulheres brancas, urbanas e de uma posição social e econômica privilegiada - é claro que existem exceções. Mas em famílias camponesas, por exemplo, que é sobre o que eu estudo, o patriarcalismo ainda é muito forte, e o trabalho feminino é visto como uma "ajuda".
EMPODERAMENTO
Eu acredito na teoria da escritora Joice Berth, de que o empoderamento é uma emancipação da mulher de forma coletiva, e não só individual. É discutir o que entendemos como poder e sobre as relações desiguais da sociedade. Reconstruir nossos comportamentos. A internet, apesar de concentrar muitas fake news, é uma ferramenta para isso. Hoje existem muitas mulheres discutindo a maternidade, por exemplo, e estimulando outras mulheres a pensarem e desromantizarem o assunto.
Renata Piecha, cientista social e antropóloga
INDEPENDÊNCIA PASSADA PARA OS FILHOS
A diarista Dora Wouters, 45 anos, desde muito nova prezou pela sua independência. Nascida no interior de Mata, aos 11 anos teve que parar de estudar por conta da dificuldade de transporte até uma escola. Com 14 anos, decidiu que terminar os estudos era seu maior sonho, e se mudou sozinha para Santa Maria. Para conseguir se manter, começou a trabalhar como doméstica durante o dia, e estudava durante a noite. Depois de terminar o Ensino Médio, começou o pré-vestibular para poder ingressar na tão sonhada faculdade, mas, aos 21 anos, ficou grávida.
- O casamento naquela época não era uma opção, por dois motivos. Primeiro, porque a gente não tinha um relacionamento que desse para se transformar em uma história a dois. Além disso, eu também não me imaginava casando naquele momento. Fui viver a vida do jeito que podia ser - conta Dora.
Ela criou a filha, Gabriela, que hoje tem 23 anos, sozinha, mas, com exceção dos três meses de licença maternidade, nunca parou de trabalhar.
- Foi sempre eu e minha filha. Eu sempre disse para ela estudar, porque é a coisa mais importante que existe no mundo para ter uma vida menos pesada. Não acho que seja indigno um trabalho com força física, mas é mais difícil - comenta.
Dora teve um único relacionamento sério, quando decidiu ter o segundo filho, o Daniel, hoje com 10 anos. Cerca de três anos depois de morar junto com o companheiro, acabou se separando.
- Eu tive minha independência muito cedo, e não consigo me prender muito. Para mim é difícil ter mais alguém. Eu com meus dois filhos, consigo acomodar tudo a minha maneira, mas se já tem uma terceira pessoa, já saiu do meu controle. A vida me moldou assim, eu acho. Eu sempre digo para minha filha, seja independente, nunca dependa de ninguém para nada, nem emocionalmente e principalmente financeiramente - diz.
Com essa independência é que ela educa seus filhos e, mesmo não sendo fácil, os incentiva a nunca deixarem de ir atrás de seus sonhos. Eles aprendem não só por meio das conversas, mas também pelo exemplo. É que a Dora, mais de 20 anos depois de terminar os estudos, não deixou de seguir seu coração. Em 2018, depois de fazer pela primeira vez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ingressou no curso de Matemática na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pouco antes da pandemia, trancou a faculdade por conta de algumas dúvidas e dificuldades, mas não esconde a vontade de concluir a graduação.
- Ser independe não é fácil. Eu fui mãe, fui pai, e em meio à pandemia ainda sou professora. Mas isso me deu uma força, que hoje em dia encaro qualquer situação. O que me da mais satisfação é que minha filha hoje está com 23 anos, é uma mulher independente, estuda, já trabalha na profissão dela, então quer dizer que deu certo, certas coisas que eu abri mão e deixei, a realidade dos meus filhos está sendo diferente da minha - completa.